O desnecessário e perigoso despacho de especificação de provas no processo
Bruno Fuga
12 de março de 2025, 16h16
Processo
Há um processo de indenização em trâmite. João, representado por seu advogado, ingressou com ação indenizatória em face de Carlos, o qual, por sua vez, apresentou contestação (Código de Processo Civil, artigo 335).
Após a contestação, o autor, devidamente intimado, apresentou sua réplica/impugnação (CPC, artigo 350) e especificou novamente as provas ao final da peça (conforme texto do artigo 350). Não foi possível a conciliação (CPC, artigo 334).
O processo, então, após o procedimento narrado, foi encaminhado ao julgador. Ao analisar os autos, verificou o magistrado que não era caso de extinção do processo (CPC, artigo 354), julgamento antecipado do mérito (CPC, artigo 355) ou julgamento antecipado parcial do mérito (CPC, artigo 356). Não se tratava também de hipótese de indeferimento da inicial (CPC, artigo 330), tampouco de improcedência liminar do pedido (CPC, artigo 332).
Ao indicar os dispositivos legais neste artigo, sinalizo ao leitor que sigo o procedimento estabelecido pelo Código de Processo Civil. Nesse contexto, o artigo 357 do CPC estabelece que: “Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo…”.
Assim, diante da ausência das hipóteses anteriores, caberia ao julgador sanear o feito. No entanto, em muitas ocasiões, o magistrado profere despacho de “especificação de provas”.
Sustentamos que tal despacho, do ponto de vista normativo, não possui previsão expressa no Código de Processo Civil, sendo, portanto, inexistente e perigoso. Seria ele válido legalmente apenas na hipótese de revelia, como descreve o artigo 348: “Se o réu não contestar a ação, o juiz, verificando a inocorrência do efeito da revelia previsto no artigo 344 , ordenará que o autor especifique as provas que pretenda produzir, se ainda não as tiver indicado”.
O que foi então positivado apenas na hipótese de revelia, passou a ser procedimento relativamente comum na rotina forense, mas como já afirmamos, poderá ser ele (o despacho de especificação) perigoso. Explicamos as razões.
Nos termos do CPC, as provas do autor devem ser indicadas na petição inicial (CPC, artigo 319, VI), enquanto o réu deve especificar as provas que pretende produzir na contestação (CPC, artigo 336). Como afirmado, o autor pode complementar sua especificação probatória na réplica/impugnação (CPC, artigos 350 e 351). Assim, quando o julgador recebe o processo, as especificações de prova já foram descritas, tornando-se o despacho de especificação de provas, além de repetitivo, um desperdício de tempo. Contudo, esse não é o maior problema.
O primeiro perigo desse despacho reside na apresentação de provas antes da decisão saneadora, pois o magistrado ainda não terá “delimitado as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos” (CPC, artigo 357, II). O segundo e principal perigo, em nosso entendimento, é que o julgador ainda não terá definido a quem incumbe o ônus probatório (CPC, artigo 357, III).
Vejamos: o julgador, ao proferir despacho, “pergunta” quais provas as partes pretendem produzir. No entanto, é essencial que, antes disso, se defina a distribuição do ônus probatório. Se o magistrado entender que o ônus é do autor, este deverá ser mais criterioso na especificação das provas a serem produzidas. O mesmo vale para o réu, cujo comportamento processual dependerá da eventual dinamização ou inversão do ônus probatório (CPC, artigo 373, §1º; CDC, artigo 6º, VIII).
Spacca
Dessa forma, fazemos dois alertas. Para aqueles que peticionam em resposta ao despacho de especificação de provas, é recomendável apresentar resposta considerando dois cenários: um no qual lhe incumbe o ônus da prova e outro no qual não lhe incumbe (caso seja possível a dinamização ou inversão). O segundo alerta é que, se houver dinamização ou inversão do ônus da prova, deverá o julgador respeitar o contraditório (CPC, artigo 373, §1º), permitindo que a parte afetada se manifeste e se desincumba do encargo probatório que lhe foi atribuído. A parte que peticionou sem previsão de possível inversão do ônus deve evitar também antecipar teses probatórias prejudiciais ao seu cliente.
Assim, o despacho de especificação de provas se revela repetitivo, pois o momento adequado para especificar provas é na inicial, contestação e réplica/impugnação. Além disso, ele é perigoso, pois questiona quais provas se pretende produzir sem que o peticionante tenha plena ciência sobre a distribuição do ônus probatório. Isso pode gerar um risco significativo de preclusão.
Se há uma expectativa de que a inversão do ônus da prova lhe favoreça, mas tal inversão não for deferida, a falta de especificação adequada dos meios de prova pode resultar em preclusão processual.
Ainda sobre a preclusão, alertamos que, por ser relativamente comum o despacho de especificação de provas, na prática, autor ou réu podem aguardar esse despacho para então especificar melhor as provas pretendidas. No entanto, isso pode levar a parte a deixar de fazer a especificação no momento adequado, que é na petição inicial ou na contestação. Como o despacho de especificação de provas não está previsto expressamente na legislação, o julgador pode, a seu critério, deixar de proferi-lo. Nesse caso, a parte que aguardou o referido despacho poderá sofrer os efeitos da preclusão. Percebe-se, assim, um risco adicional, pois o advogado, por hábito, pode acabar criando uma situação de preclusão ao esperar por um despacho que pode não ocorrer.
Essas são considerações reflexivas para abordar um tema não positivado no Processo Civil: o despacho de especificação de provas. Diante da ausência de previsão legal, devemos atuar com cautela para evitar preclusões e também não antecipar teses favoráveis à parte adversária.
Em tempo, esse tema tem como pano de fundo uma questão que entendo ser ainda mais complexa: as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória e os meios de prova admitidos (CPC, artigo 357, II) são delimitados no despacho saneador, enquanto o possível “despacho de especificação de provas” (ou o momento de especificação na petição inicial, contestação e réplica/impugnação) ocorre em momento anterior. Assim, as partes deveriam ter a oportunidade de delimitar os meios probatórios somente após o julgador definir “as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória” (CPC, artigo 357, II). Parece contraditório determinar o que provar e como provar antes mesmo de se saber quais são as questões de fato que serão objeto da atividade probatória.
No entanto, o presente artigo tem como foco apenas a inexistência legal do despacho de especificação de provas no processo e os possíveis riscos a ele inerentes. Quanto à possível inversão do momento adequado para a delimitação das questões de fato (CPC, artigo 357, II), pretendo abordar o tema em outro texto, em breve.